Tokenização: é seguro comprar imóvel em um clique?

17 de outubro de 2025

 

A promessa de comprar um imóvel “com um clique”, convertendo a propriedade em tokens digitais, ganhou espaço no noticiário e vem gerando polêmica no setor imobiliário. A ideia parece sedutora: tornar qualquer imóvel fracionável, líquido e acessível, usando blockchain e contratos inteligentes. Mas, por trás da inovação tecnológica, há uma questão essencial — a segurança jurídica. No Brasil, o que garante o direito de propriedade não é o código da plataforma, e sim o registro público.

 

Especialistas e registradores afirmam que o sistema atual, além de histórico, é altamente tecnológico e vem se modernizando sem abrir mão de suas garantias. “O Registro de Imóveis é uma das maiores expressões de segurança jurídica do país”, afirma Caleb Miranda, conselheiro da Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo – ARISP e diretor de novas tecnologias do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB).

 

Segundo ele, “a principal função do Registro é avaliar se os documentos que transmitem ou modificam direitos sobre bens imóveis estão de acordo com o que a lei exige. A proteção à propriedade decorre da análise jurídica dos títulos — e não do mero armazenamento das informações”.


Dúvidas sobre segurança

 

A chamada tokenização imobiliária converte o valor ou a titularidade de um imóvel em frações digitais, chamadas tokens, que podem ser negociadas em plataformas. O modelo é inspirado no mercado financeiro e em soluções de fintechs que usam blockchain para garantir rastreabilidade e integridade de dados.


No entanto, especialistas em Direito Imobiliário e registradores públicos alertam: o fato de uma informação estar em blockchain não a torna verdadeira nem válida juridicamente. “Se a informação não passou por um processo de validação jurídica, ela não se torna confiável só por estar em uma plataforma tecnologicamente segura”, observa Miranda.

 

Na prática, um token pode representar um imóvel de maneira simbólica, mas sem os efeitos legais de um registro. O comprador pode acreditar ser dono de uma fração, quando na verdade adquire apenas um crédito ou um contrato privado sem eficácia perante terceiros.

 

“A segurança do cidadão nasce do filtro de legalidade feito pelo Registro de Imóveis”, explica o conselheiro. “Somente entram no sistema os atos e negócios que estão de acordo com a lei. Isso quer dizer que o contrato envolvendo o imóvel foi analisado detalhadamente antes do registro, para garantir que cumpre todos os requisitos legais e está em conformidade com o Direito”.

 

Riscos de sistemas paralelos e vulnerabilidade social

 

A criação de sistemas paralelos de registro, baseados apenas em blockchain, sem integração com o sistema público, traz riscos reais. O primeiro é a insegurança jurídica sistêmica, com o surgimento de “mercados paralelos” de imóveis tokenizados, sem validade perante terceiros.

 

Miranda exemplifica: “Uma certidão poderia dizer que um imóvel era de João e foi vendido para Maria, mas essa informação não seria confiável se o documento não atendesse aos requisitos legais. Parece teórico, mas é o retorno a um passado anterior ao Código Civil de 1916, quando não havia segurança nas transações.”

 

Outro risco seria a desconstrução do princípio da concentração, que determina que todas as informações sobre um bem imóvel estejam reunidas em uma única matrícula. “O Registro surgiu em 1843 justamente para permitir a consulta unificada. Se as informações se dispersarem em múltiplas plataformas privadas, a sociedade perderá um dos maiores avanços do sistema: a certeza sobre quem é o proprietário”, diz o especialista.

 

O terceiro impacto é econômico e social. Sem a verificação de legalidade, o Estado não poderia ressarcir quem confiasse em registros incorretos. “A fé pública é o que torna o sistema sustentável. O filtro de legalidade funciona como o seguro de um carro guardado na garagem — reduz o risco. Se a legalidade deixar de ser verificada, o custo dos litígios e das perdas se tornará insuportável”, adverte Miranda.


Justiça Federal concede decisão emblemática garantindo que a tokenização imobiliária deve ser regulada pelo CNJ

 

A Justiça Federal, por meio da 21ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, concedeu uma decisão de grande relevância para o mercado imobiliário brasileiro. Em ação movida pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) contra o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci), o juiz Francisco Valle Brum suspendeu os efeitos da Resolução Cofeci nº 1.551/2025, que pretendia instituir um “Sistema de Transações Imobiliárias Digitais” e criar figuras como o “token imobiliário digital” e os “direitos imobiliários tokenizados”.

 

Na decisão, o magistrado reconheceu que o Cofeci extrapolou suas atribuições legais ao tentar criar um regime jurídico próprio para a tokenização de imóveis — matéria que, segundo a Constituição Federal, é de competência privativa da União e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O juiz destacou que apenas o ONR, sob supervisão do CNJ, tem legitimidade para operar e regular o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), plataforma segura na qual devem tramitar as operações imobiliárias digitais. Assim, qualquer iniciativa fora desse ambiente oficial poderia gerar insegurança jurídica e transações inválidas.

 

O Poder Judiciário também advertiu para os riscos de “sistemas paralelos” de registro e determinou que o Cofeci cesse imediatamente a divulgação de sua resolução, inclusive em redes sociais. Ao reforçar o papel do ONR e do CNJ na governança digital dos registros públicos, a decisão estabelece um marco importante: a tokenização imobiliária no Brasil deve observar o controle jurídico e a regulação institucional do sistema registral, preservando a segurança das transações e a fé pública que sustenta o mercado imobiliário.

 

Um sistema público com 182 anos de história e resultados

 

O sistema registral brasileiro, criado em meados do século XIX, é considerado um dos pilares da segurança jurídica nacional.

Regulamentado pela Lei nº 6.015/1973 e fiscalizado pelo Poder Judiciário, o modelo combina autonomia técnica, fé pública e responsabilidade estatal.

 

“O Supremo Tribunal Federal, no Tema 777, definiu que o Estado responde objetivamente por eventuais erros no registro”, lembra Miranda. “Isso mostra a confiança institucional no sistema. E essa responsabilidade só é possível porque a margem de erro é mínima — resultado direto da análise criteriosa feita por registradores concursados.”

 

Com cerca de 3,6 mil serventias imobiliárias em todo o país, o sistema opera de forma descentralizada, mas conectada por redes eletrônicas seguras. A coordenação nacional é feita pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), criado por lei e supervisionado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

 

“O cidadão pode solicitar certidões eletrônicas, acompanhar registros e consultar matrículas em tempo real, sem sair de casa. Tudo isso é possível porque há uma infraestrutura institucional que combina segurança jurídica e tecnologia de ponta”, explica o diretor do IRIB.

 

Blockchain e IA: camadas de segurança, não substitutos


A blockchain é, de fato, utilizada no ambiente registral — mas como camada adicional de segurança, não como substituto. “O registro eletrônico já utiliza blockchain para selagem e certificação de integridade de dados. Mas quem faz o juízo de legalidade é o registrador, não o algoritmo”, esclarece Miranda.

 

Ele faz uma analogia: “O engenheiro civil não se confunde com o software que usa para calcular uma estrutura. O programa armazena e organiza informações, mas quem mede, verifica e planeja é o engenheiro. No Registro de Imóveis é igual: a tecnologia auxilia, mas a atividade intelectual e jurídica é humana.”

 

Miranda também rebate o mito de que a inteligência artificial poderá substituir o trabalho jurídico. “O Direito não é um jogo de regras fixas. Envolve interpretação, linguagem, precedentes, valores e contexto social. Nenhum sistema de IA, no estágio atual, é capaz de fazer análise registral com a precisão e a responsabilidade que o ser humano exerce.”

 

Digitalização e eficiência: o registro já é tecnológico

 

O registro público vem passando por uma transformação profunda e atualmente é um dos setores mais avançados em tecnologia do país. “Hoje, ordens de indisponibilidade e penhora de bens são processadas eletronicamente, de forma automática e nacional”, destaca Miranda. “Antes, cada juiz enviava ofícios em papel a dezenas de cartórios. Hoje, um sistema central distribui tudo digitalmente em segundos.”

 

As pesquisas de bens e as consultas a matrículas também se tornaram digitais, com acesso 24 horas por dia. Certidões eletrônicas são emitidas em menos de duas horas. “Pode-se dizer que o modelo foi aperfeiçoado em muito pela tecnologia, sem abrir mão da legalidade”, afirma.

 

Os registradores lembram que esse processo é contínuo. O próprio Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) trabalha em novas integrações com sistemas bancários, de crédito imobiliário e órgãos públicos, ampliando a automação e a transparência.

 

A plataforma RI Digital é um exemplo real dos avanços do setor em tecnologia. O sistema unificou todas as unidades de Registro de Imóveis do Brasil em um só lugar, oferecendo acesso digital direto e centralizado aos cartórios.

 

Desenvolvido e mantido pelo ONR, o RI Digital permite serviços como emissão de certidões digitais, visualização de matrículas, envio de documentos eletrônicos (e-protocolo) e acompanhamento de processos, tornando o processo mais prático, ágil e seguro para profissionais e para o público em geral.

 

O papel social do registro: reduzir fraudes e desigualdades

 

O Registro de Imóveis não é apenas um repositório de dados. Ele previne litígios, protege o cidadão e evita a circulação de negócios ilícitos. “Ao exigir que cada documento seja analisado antes do registro, o sistema impede que fraudes ou falsificações sejam incorporadas à base oficial”, afirma Miranda.

 

O princípio da concentração — segundo o qual o que não consta da matrícula não pode afetar terceiros — garante previsibilidade e reduz conflitos judiciais. Isso beneficia especialmente os mais vulneráveis, que encontram no registro público a segurança de que o imóvel que compraram realmente lhes pertence.

 

“O Registro é também uma política pública de estabilidade social”, diz o conselheiro. “Ele protege o patrimônio das famílias, dá segurança aos credores e assegura que o mercado funcione com regras claras e verificáveis. É o oposto do que ocorreria em um sistema fragmentado, de múltiplas plataformas privadas e sem controle legal.”

 

Inovação responsável: o caminho do futuro

 

Para Miranda, o desafio não é escolher entre tecnologia e segurança jurídica, mas integrar as duas dimensões. “É não apenas possível — é necessário — conciliar tecnologia de ponta com o controle jurídico e público dos direitos sobre bens imóveis”, afirma.

 

Segundo ele, qualquer modelo de tokenização precisa ser regulado pelo CNJ e integrado ao sistema público. “Inovar é alterar o sistema; melhorar é torná-lo mais eficiente sem perder suas garantias. Quando esses requisitos são atendidos, a tecnologia se torna uma verdadeira melhoria — capaz de aumentar eficiência e velocidade sem abrir mão da fé pública e da proteção do cidadão.”

 

O futuro, portanto, está em fortalecer o sistema oficial com novas camadas de tecnologia — não em substituí-lo. A tokenização pode ser uma aliada, desde que lastreada na matrícula do Registro de Imóveis e submetida ao mesmo rigor jurídico que garante a propriedade há 182 anos.

 

O clique só é seguro quando o registro é público

 

Comprar, fracionar ou transferir um imóvel com um clique pode ser realidade — mas apenas se houver controle jurídico, fé pública e fiscalização estatal.

 

“O Registro de Imóveis é a espinha dorsal da segurança jurídica imobiliária brasileira”, conclui Caleb Miranda. “A fé pública decorre de atividade jurídica regulada e fiscalizada pelo Poder Judiciário. A tecnologia deve servir para reforçar essa estrutura — não para substituí-la. É isso que garante que o direito de propriedade continue sendo um instrumento de segurança, e não de risco.”

 

Confira aqui a matéria publicada na Gazeta do Povo.

 

Confira também as publicações anteriores:

 

Registro de Imóveis: barreira estratégica contra fraudes e lavagem de dinheiro no Brasil

Registro de Imóveis do Brasil: tradição, eficiência e tecnologia

Reforma Administrativa e o Registro de Imóveis do Brasil

 

Fonte: Gazeta do Povo